Angélica Cigoli Frangella é graduanda em Letras pela Universidade de São Paulo (FFLCH-USP), dedica seus estudos à prosa do autor estadunidense F. Scott Fitzgerald, e a relação do trauma na literatura. Além disso, tem se aprimorado na pesquisa de literatura e psicanálise.
São 3h e pouco da manhã quando acordo. Ainda no escuro, tateando as paredes, vou até o banheiro. Quando era criança, precisava acender as luzes para ir ao banheiro de madrugada, apesar de que as luzes acesas poderiam ser um problema, já que as sombras também me incomodavam. Tinha pavor de sombras nas paredes porque elas eram indícios de que alguém estava no cômodo. Até houve uma vez, quando criança, que sonhei que estava comendo pêssego, sentada no sofá, e vi uma sombra na cozinha; tentei gritar e engasguei com um pedaço da fruta que comia – e então acordei. Já não preciso mais disso, essas luzes todas: vou tentando me encontrar no escuro mesmo, não sinto medo do corredor (só se olho fixamente para seu final, porque minha cabeça começa a criar interpretações do pouco que se consegue enxergar); além disso, sei que as luzes acesas farão o sono custoso ir embora. Um pouco é porque amadureci, mas também porque já sou cética demais para achar que há fantasmas esgueirados pela minha casa – de qualquer forma, o corredor é pequeno, não tem onde se esconderem. Mas o ceticismo de fato é uma característica fundamental. Assim como um dia os pais nos soltam pelo mundo, Deus me emancipou antes que eu pudesse me dar conta. Tenho um problema imenso com Deus – e ainda maior com os que acreditam nele. Logo reparei que Deus não cuidou de mim porque meus problemas não eram tão significativos. Existia eu e minha personalidade disfuncional, e, ao mesmo tempo, as doenças terminais no hospital. Eu sofria, mas guerras eram instauradas. Desde cedo aprendi que o mundo era muito mais assombrado do que minha casa, e assim meus sentimentos não eram dignos da bondade e cuidado de Deus. E assim me tornei insignificante para mim e para os outros, mas, para Deus, provavelmente sempre fui. A vida é um pouco mais sozinha desde então, isso de não ter quem responsabilizar seus erros e acertos; não acordar com a ânsia de descobrir os planos de Deus. Essas certezas sobre Deus uma hora chegam e acertamos as contas com os anjos, em nossas orações raivosas quando tudo desmorona.
Penso muito em Deus, e isso se repete quando penso nesses medos – como esses mais bestas, medo de escuro. Agora, me olhando no espelho, vejo esse grande borrão preto. Pelo escuro, não saberia dizer se sou mesmo eu, ou se os hipotéticos fantasmas do corredor tomaram meu corpo enquanto dormia. A verdade é que poderia ser qualquer pessoa, e não necessariamente Eu. Só vou saber quando acordar de novo, quando for de manhã, quando as luzes puderem ficar acesas. Enquanto isso me mexo na frente do espelho. São estranhas essas duas tonalidades de preto que formam a parede atrás de mim e minha sombra. Mas, mesmo de luzes acesas, ainda me faria a mesma pergunta, se diante do espelho: quando foi que me tornei esse borrão? E se, na verdade, esse borrão não é fruto desse escuro? Me mexo mais um pouco, mas o reflexo não se mexe mais. Pego nos meus cabelos, chacoalho as mãos, e o reflexo estático. São 3h e pouco da manhã e eu no escuro desse banheiro, por que esse reflexo não se mexe se eu estou me mexendo? O borrão tomou consciência de si; é o meu duplo ciente de sua face amorfa – ainda que amorfa, é a Sua face. Bato com força a mão no interruptor e as luzes não acendem. Continuo batendo e nada, a luz não acende, e agora eu acho que se eu abrir a porta do banheiro os fantasmas podem, sim, estar no corredor. E eles vão me puxar pelos calcanhares e terei de gritar desculpas por achar que não existiam; o Deus punitivo que sempre odiei trazendo seus servos para descontar meu ódio por ter sido negligenciada até mesmo por um homem misericordioso como ele. A luz não acende e eu continuo me mexendo; reflexo estático. Toco no espelho e a superfície não é gelada, é macia, quente, e me dou conta que são os dedos do reflexo me tocando, são as suas mãos. A mão, que agora é mais real que a minha, agarra meu pulso e grito, a garganta chega a arder e não sai som algum, como no sonho que engasgo com o pêssego. E, mesmo se saísse, ninguém ouviria, porque o som das bombas lá de fora e os aparelhos das UTI e das madeiras dos palanques de políticos e dos noticiários sangrentos sempre vão ser mais altos que o choro gritado que sai de mim – e Deus não vai ter tempo para esses problemas invisíveis que moram em mim e nesse reflexo que era para ser eu. A outra mão do reflexo se estende aberta na direção do meu rosto, aperta minhas têmporas com força e me faz desmaiar.
E de repente estou na minha cama. São 10h da manhã, mas continua noite lá fora. Daquele surto de consciência de outrem nasceu esse dia que nunca amanheceu. A moral da história de nossas vidas talvez seja essa: acordar para a realidade escurecida e nunca mais conseguir distinguir o que é da gente e o que é da escuridão. Ou melhor: o que era a gente, mas agora é a própria escuridão.
Fotografia: Anoitecer na serra – km 61 – Arthur Wischral (Acervo Instituto Moreira Salles).
Comment (1)
Uau… Eu querendo levantar da cama para ir ao banheiro agora, com medo de ver o borrão.